Apenas na semana passada, às vésperas de assistir ao show do Chico Buarque, adquiri o disco “Caravanas” lançado em agosto de 2017. Eu conhecia apenas a belíssima canção “Tua Cantiga”, aquela que gerou a polêmica do homem que largaria mulher e filhos pra ficar com a amante. Dentre as inéditas, o disco tem excelentes canções, como “Blues pra Bia”, “Jogo de bola” (com melodia sinuosa que lembra os dribles de Garrincha) e “Massarandupió”, em parceria com o neto Chico Brown. No entanto, fiquei fascinado com a canção que dá título ao disco e à turnê. Já ouvi umas 50 vezes.
Em “As Caravanas” Chico traz novamente o subúrbio do Rio como protagonista, assim como fez em “Subúrbio” de 2005. No entanto, o fio narrativo aqui é o da luta de classes e o apartheid social que ficou mais acirrado nos últimos anos quando “gente ordeira” saiu por aí reivindicando seu lugar camuflados de preocupação com a corrupção. Não há barreira que retenha os estranhos suburbanos do norte em suascaravanas desembarcando na zona sul. Ainda na mesma linha, a canção aborda o ódio que gera os linchamentos públicos e as vozes insanas que ele diz escutar. Um recado aqueles homens de bem que destilaram sua ignorância a ele. Na parte “B”, ao falar dos “crioulos empilhados no porão de caravelas no alto mar”, o compositor não apenas remete ao tráfico de escravos, embrião da situação degradante da população negra no país, mas também nos transporta para a condição dos refugiados tentando uma sobrevida nas terras de povos que tanto lhes exploraram.
Tudo isso numa espécie de bolero-funk-rumba cubana num estatismo de lá menor e seu relativo maior que depois se movimenta num baixo cromático da maneira que Chico sempre gosta de fazer. A referência motívica e harmônica de “Caravan” de Duke Ellington não pode ser desprezada. A participação de Rafael Mike da turma do passinho com seu beatbox de funk gerou em mim uma percepção paradoxal: ao mesmo tempo que compõe com a narrativa da canção de forma exemplar, também rivaliza com a estrutura musical harmônica e com o arranjo de Luis Claudio Ramos. Como se o funk ali estivesse tão estrangeiro quanto os muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá.
Esse textão todo pra dizer do meu êxtase de ver e ouvir esse companheiro vivendo, produzindo e falando de Brasil já na sétima década de vida !
[texto publicado originalmente no facebook em 06/02/2018]
As Caravanas
É um dia de real grandeza, tudo azul Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos E um sol de torrar os miolos Quando pinta em Copacabana A caravana do Arará – do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha Não há barreira que retenha esses estranhos Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho A caminho do Jardim de Alá – é o bicho, é o buchicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas Em sungas estufadas e calções disformes Diz que eles têm picas enormes E seus sacos são granadas Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam em polvorosa A gente ordeira e virtuosa que apela Pra polícia despachar de volta O populacho pra favela Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Sol, a culpa deve ser do sol Que bate na moleira, o sol Que estoura as veias, o suor Que embaça os olhos e a razão E essa zoeira dentro da prisão Crioulos empilhados no porão De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria Filha do medo, a raiva é mãe da covardia Ou doido sou eu que escuto vozes Não há gente tão insana Nem caravana do Arará
Autoria: Chico Buarque Violão: Chico Buarque Arranjo e guitarra: Luiz Cláudio Ramos Beat-box: Rafael Mike Baixo: Jorge Helder Piano e teclados: João Rebouças Bateria: Jurim Moreira Percussão: Sidinho Moreira Congas: Ian Moreira
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